Especial Credo 01 – Cremos, não em algo, mas em Alguém

Nas suas primeiras palavras sobre a “profissão de fé”, o Catecismo da Igreja Católica nos põe diante da seguinte reflexão: “quando professamos a nossa fé, começamos por dizer: «Creio», ou «Cremos». Portanto, antes de expor a fé da Igreja, tal como é confessada no Credo, celebrada na liturgia, vivida na prática dos mandamentos e na oração, perguntemos a nós mesmos o que significa «crer»”.

A compreensão da fé passa, necessariamente, pela reflexão acerca de três realidades: a sede que o homem tem de Deus, a Revelação de Deus ao homem e, por fim, a resposta do homem à Palavra de Deus.

O desejo, a sede, a ânsia por Deus é um sentimento inscrito no coração do homem. Desde o princípio da história, podemos observar a humanidade em sua busca incessante por uma razão primeira e um sentido último. Este sentimento, é normalmente retratado como um vazio, sede ou procura: o vemos na Palavra, como o Salmo 41[1], nas expressões dos Santos, tal qual Santo Agostinho[2], ou até mesmo da literatura popular[3].

Igualmente, notamos que o homem sempre expressou este sentimento nas mais diversas crenças e comportamentos, de forma tão universal que podemos, sem qualquer dúvida, chamar ao homem um ser religioso.

Este ser religioso, que pode, a partir das obras do Ser-em-si, ou seja, observando a criação – ao mundo e a si mesmo, nos fatos e acontecimentos – conhecer Deus com certeza. Todavia, existe outra ordem de conhecimento, que o homem de modo nenhum pode atingir por suas próprias forças: a da Revelação divina[4].

“Aprouve a Deus, na sua sabedoria e bondade, revelar-Se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade, segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tomam participantes da natureza divina”.[5]

Todavia, Deus não se revela todo de uma só vez: Ele tem, para conosco, uma pedagogia. Desde a origem, Deus se dá a conhecer, elege e forma o seu povo e o prepara para a sua Palavra definitiva. E assim, educados pelo Criador, já na plenitude dos tempos, Cristo, Filho de Deus feito homem, fala-nos e se nos revela como a Palavra única, perfeita e insuperável[6] do Pai, que se fez carne, que se fez tempo, que se fez história.

Chegamos, ao final deste simples caminho, à resposta do homem ao Homem. Pela sua revelação“Deus invisível, na riqueza do seu amor, fala aos homens como amigos e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele”[7]. A resposta adequada a este convite é a fé.

Pela fé – graça de Deus que depende apenas da abertura de coração -, o homem submete completamente a Deus a sua inteligência e vontade; com todo o seu ser, dá assentimento de tudo ao Deus revelador. Há um encontro com um Homem, e esta experiência viva e vivificante, faz o homem aderir, livre, consciente e pessoalmente, à Pessoa e à Verdade, mas lembremos: à Verdade, pela confiança na Pessoa que a atesta.


[1] “Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando irei contemplar a face de Deus?”;

[2] “Tu tens nos Criado para Ti, ó Senhor, e nossos corações não podem achar descanso até descansarem em ti”;

[3] “O homem tem em si um vazio do tamanho de Deus” – Fiódor Dostoiévski;

[4] I Concílio do Vaticano, Const. dogm. Dei Filius, c. 4;

[5] II Concílio do Vaticano, Const. dogm. Dei Verbum, 2;

[6] II Concílio do Vaticano, Const. dogm. Dei Verbum, 4;

[7] Ibid 5

Baú da Fé 64 – Conversão e Vida da Graça

“Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo” (Apocalipse 3:20).

O convite à conversão feito por Nosso Senhor é muito claro durante toda a história da humanidade. O conteúdo fundamental do Antigo Testamento está resumido na mensagem de João Batista: Convertei-vos![1] Não se acede a Jesus sem o Batista; não existe possibilidade de chegar a Jesus sem responder ao apelo do precursor; aliás:  Jesus assumiu a mensagem de João na síntese da sua própria pregação:  convertei-vos e acreditai no Evangelho.[2]

Em primeiro lugar, esse pedido é feito àqueles que ainda não conhecem Cristo e o seu Evangelho. Por isso, o Batismo é o momento principal da primeira e fundamental conversão. É pela fé na boa-nova e pelo Batismo que se renuncia ao mal e se adquire a salvação, isto é, a remissão de todos os pecados e o dom da vida nova[3].

Para chegar a esta primeira conversão, vale-se da graça incriada, também chamada de graça atual suficiente, que é o próprio Deus, que habita consubstancialmente o homem e o convida a participar da Sua vida sobrenatural. Assim, entende-se que a graça suficiente é bastante para a primeira conversão, mas não para a salvação. Mas o que, exatamente, quer dizer isto?

A palavra conversão vem do grego metanoia, que, literalmente traduzido, quer dizer “mudança de mentalidade”. Todavia, é verdade que designa muito mais, significando um remodelamento total e irrestrito da pessoa, uma profunda transformação interior.

Converter-se, assim, significa não viver como vivem todos, não fazer como fazem todos, não se sentir justificado em ações duvidosas, ambíguas, perversas simplesmente porque há quem o faça. Conversão é começar a ver a própria vida com os olhos de Deus e, portanto, procurar o bem, mesmo se não é agradável; não apostar no juízo da maioria, mas no juízo de Deus. E é por isso que exige sacrifício, pois é preciso persistir na conversão, neste desfigurar de nós mesmo para que sejamos configurados a Cristo por meio da graça habitual, para ouvir o Senhor, identificando e arrancando do coração outros ídolos que estão tomando o lugar d’Ele e fazendo com que não saibamos quem somos.

Tomemos o exemplo evangélico da cura do cego em Betsaida. Após realizar o milagre, Jesus o manda voltar para casa, mas diz que ele não entre no povoado. O que a principio gera dúvida, porque como ele chegaria a sua casa sem passar pelo povoado? Podemos enxergar, então, que o “voltar para sua casa” ultrapassa um caminho físico e desvela toda a espiritualidade da conversão.

Significa que era necessário voltar para dentro de si mesmo, encarar a nova realidade vista pelos seus olhos curados, descobertos das escamas do mundo e, agora, divinizados pela graça do Espirito Santo, assumindo que sua vida tinha sido transformada. Assim também é o convite do Nosso Senhor para nós: que tenhamos um olhar límpido e purificado, para que possamos enxergar o que ainda nos impede de ser inteiramente de Deus e segui-lo fielmente.

Quem se converte a Cristo não pretende criar uma autonomia moral própria, não pretende construir, com as próprias forças, a sua bondade. “Conversão” significa precisamente o contrário:  abandonar a auto-suficiência, descobrir e aceitar a própria indigência, a indigência dos outros e do Outro, do seu perdão, da sua amizade. A vida não convertida é autojustificação (não sou pior do que os outros); a conversão é a humildade de se confiar ao amor do Outro, amor que se torna medida e critério da minha própria vida.[4]

Esta é a segunda conversão em que Cristo continua a fazer-se ouvir na vida dos cristãos.[5] É necessário acolher o convite de Deus, arrependendo-se de seus pecados e buscando – a cada dia – a vida sacramental, para receber a graça habitual ou santificante, na qual radica e da qual nasce todo um organismo espiritual, que a pessoa recebe no Batismo ou recupera na Confissão.

Este esforço diário, constante, determinado e persistente é o movimento de um coração contrito, atraído e movido pela graça para responder ao amor misericordioso de Deus, que nos amou primeiro e que nos deu a promessa da eternidade.


[1] Intervenção do cardeal Joseph Ratzinger durante o congresso dos catequistas e dos professores de religião, 2000

[2] cf. Mc 1, 15

[3] Cf. Act 2, 38.

[4] Ibid 1

[5] CIC, § 1428