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Especial Virtudes Cardeais 02 – “Reflexão: o alimento da prudência”

No primeiro texto desta série, vimos que a prudência é uma razão prática, ou seja, é o raciocínio que se ocupa com o que devemos fazer em vista de algum fim. Não simplesmente um pensamento hipotético, mas uma reflexão que almeja a efetiva ação. Vejamos, nas palavras de São Tomás de Aquino[1]:

“Ora, três são os atos da razão. O primeiro é aconselhar, próprio da invenção, pois aconselhar é indagar, como já estabelecemos. O segundo ato é julgar as cousas descobertas; e a isso se limita a razão especulativa. Mas a razão prática, que ordena para a obra, vai além e tem como terceiro ato mandar, ato consistente na aplicação à obra do que foi aconselhado e julgado.”

Assim, percebemos que o primeiro movimento da prudência é, objetivamente, a reflexão, que se torna a sustentação de todos os seus demais atos, o alimento que nutre todo o agir do homem prudente. Noutras palavras, se um bom terreno providencia, à semente, todo o necessário para germinar e crescer, numa reflexão bem feita, o homem encontra a potência para bem discernir, atuar e atingir o fim para o qual foi criado[2].

Todavia, diante de um mundo extremamente efêmero, que valoriza sempre a quantidade, e não a qualidade, a aparência e não a substância, saltamos de um fazer a outro fazer, sem tomarmos o devido tempo para refletir. É preciso parar e aprender a pensar: aprender a usar bem a nossa razão, dom de Deus ao homem, sua criatura predileta.

É evidente que muitas vezes as nossas decisões precisam ser imediatas, precisamos responder aqui e agora – mas certo é que um homem habituado à reflexão, auxiliado sempre pela graça, torna-se um homem prudente e, por mais breve que seja o tempo para sua oração e decisão, age sempre visando o sumo bem.

Aqui já vemos uma das primeiras dificuldades para uma boa reflexão: a afobação da urgência, quando não a própria preguiça de pensar. Enquanto algumas vezes efetivamente somos ‘forçados’ a decidirmos com rapidez, na grande maioria delas a culpa é nossa, pois não ordenamos o nosso dia, adiamos a reflexão ou, ainda, permitimo-nos levar pelos sentimentos de angústia e ansiedade.

É muito importante aprofundarmos neste ponto pois, em diversas ocasiões, pensamos em meio à ansiedade, angústia e aflição, mas estes sentimentos facilmente encampam o raciocínio e, no fim das contas, como naturalmente nosso corpo busca se afastar daquilo que o faz penar, a nossa decisão termina se voltando para cessar o sofrimento e não para o verdadeiro bem.

A serenidade do coração é fundamental para uma boa reflexão. É preciso refletir sob a luz de Deus e não sob a luz dos sentimentos! É na vossa luz que vemos a luz[3]. Trata-se disso: de pedir a luz do Espírito Santo, de examinar o que devemos resolver sob o resplendor da verdade de Deus, de sua palavra, de seus mandamentos, acolhidos num coração sincero.[4] Assim, munidos dos pensamentos de Deus, poderemos dar os próximos passos num discernimento reto.


[1] São Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIa IIae, Questão 47, art. 8

[2] São João Paulo II, Audiência Geral, 25/10/1978: Assim a prudência constituí a chave para a realização do encargo fundamental que Deus confiou a cada um. Este encargo é a perfeição do próprio homem.

[3] Sl 36, 10

[4] Pe. Faus, A virtude da prudência – a arte de decidir bem.

Especial Virtudes Cardeais 01 – “No coração do prudente repousa a Sabedoria*”

Ao falarmos de prudência, automaticamente muitos de nós, numa visão míope, reduzem-na a um simples dever de cautela, o que, observando-se como um cuidado para evitar o mal, não passa de apenas um dos aspectos desta virtude cardeal.

Se o entendimento popular de prudência é, no mínimo, superficial, e, no entanto, estamos diante de uma das virtudes “que desempenham um papel de dobradiça”[1], ou seja, que todas as outras se agrupam em torno delas, é necessário mergulharmos nos ensinamentos da Igreja para bem entendermos o seu papel no progresso espiritual, na compleição do Amado e na nossa configuração a Ele.

Primeiramente, então, vejamos o que nos ensina o Catecismo da Igreja Católica sobre a virtude da prudência: “é a virtude que dispõe a razão prática para discernir, em qualquer circunstância, o nosso verdadeiro bem e para escolher os justos meios de o atingir”[2].

Há uma clara predileção da Doutrina católica por esta virtude, mas devemos, antes de mais nada, entender bem o porquê desta preferência. São Tomás de Aquino a chama de “mãe das virtudes”[3]: não que seja a maior de todas elas (a maior virtude humana é a justiça e a caridade, a maior de todas as virtudes), mas guia, orienta as outras virtude para o seu próprio fim, ajudando-as a manter-se no ponto certo: ela é auriga virtutum, literalmente, condutora (auriga, em latim) do carro das virtudes.

Agora, voltando-nos para uma reflexão trazida pelo Pe. Francisco Faus[4], devemos gravar bem estas palavras para não perdermos de vista que a prudência visa, principalmente, realizações práticas. Para isso, vejamos algumas simples consequências do bom entendimento desta firme definição do catecismo:

  • A definição começa dizendo que é uma virtude que tem como base a razão prática, não o raciocínio puramente teórico. A prudência, com efeito, visa à realização das ações sobre as quais temos que pensar e decidir, não à resolução de teoremas;
  • É uma virtude que leva a discernir, ou seja, a conhecer e distinguir claramente – limpando confusões mentais − qual é a ação certa que se deve praticar;
  • A finalidade do prudente é o “verdadeiro bem”, ou seja, ao bem moral objetivo. Ter bem firme esta visão objetiva de bem moral evita que nos percamos no discernimento das coisas, pois, senão, caindo na pura subjetividade, o bem e o mal não se poderiam distinguir;
  • Discernido o verdadeiro bem, escolhemos os meios adequados para fazê-lo. Em outras palavras, tendo escolhido “o que quero fazer”, norteado pelo bem moral objetivo, agora nos perguntamos “como vamos fazê-lo”?
  • Finalmente, com os meios bem escolhidos, chega o momento de decidir-se a agir, a fazer;

Iluminados por estas palavras, queremos conduzir você, nos próximos textos, a uma reflexão acerca dos quatro atos da prudência[5]: (1) a reflexão; (2) o juízo; (3) a decisão; e (4) a realização. Esses são os passos que, bem refletidos, transformam o conhecimento do verdadeiro bem em uma decisão que, por sua vez, conduz à união com o Esposo, que, imolado, já não morre; e, morto, vive eternamente.


* O título faz menção a Provérbios 14, 33

[1] CIC 1805

[2] CIC 1806

[3] São Tomás de Aquino, Genitrix virtutum 3, d. 33, 2, 5

[4] As reflexões deste texto foram tomadas do livro “A arte de decidir bem – a virtude da prudência”, do Pe. Francisco Faus. Nascido em Barcelona em 1931, é sacerdote da prelazia do Opus Dei. É licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canônico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside, desde 1961, em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de formação cristã e atenção espiritual entre estudantes universitários e profissionais.

[5] São Tomás de Aquino, Suma Teológica II-II, questões 47 a 56