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Especial Virtudes Cardeais 06 – “Não te desvies nem para a direita nem para a esquerda, e retira o teu pé do mal*”

Continuando a nossa formação acerca das virtudes, queremos trazer, para você, uma reflexão bem diferente acerca da temperança, também chamada de virtude da sobriedade – a qual leva o corpo e os nossos sentidos a encontrarem o justo lugar que lhes pertence no nosso ser humano[1].

Para melhor compreendermos esta virtude cardeal, pedimos licença, mais uma vez, ao Pe. Francisco Faus[2], e, ainda mais em tempos de isolamento social, concentraremos os nossos esforços no brilhante exemplo do “Restaurante Virtual”, aonde nos aproximaremos e observaremos quatro mesas deste restaurante. Não nos desviemos em alguns possíveis exageros da narrativa, mas atentemos a cada detalhe da breve descrição, passando por cada mesa.

Na primeira mesa, encontramos um casal com seus três filhos, um garoto e duas meninas. Olhando para eles, percebemos que todos estão bem acima do peso. Em sua casa, quando alguém fica abaixo dos cem quilos, já se julga que ficou doente, pois está emagrecendo sem motivos. Com grande vivacidade, os cinco vão engolindo grandes quantidades de comida – massas, costelas de porco com barbecue, almôndegas, molho… tudo regado a bastante refrigerante e finalizado com diversas sobremesas.

Na segunda mesa, só há duas pessoas: um garoto de doze anos e o seu avô. O garoto não para de espernear e gritar um só segundo: não quero, não quero, não quero! Tudo lhe é motivo de desgosto e nada lhe apetece. O avô, certamente cansado, rende-se à pirraça e, não apenas dá a seu neto o que bem quer – doces e refrigerante – como, mesmo diabético, pede uma bela fatia de floresta negra.

Já na terceira mesa, há dois casais que só falam de comida o tempo inteiro. Usam roupas e adereços caríssimos, olhando com desdém aqueles que passam com trajes mais simples. Falam de suas viagens internacionais e dos restaurantes “três estrelas Michelin”. As noites em que gastaram quinhentos reais, por pessoa, apenas para provar o melhor porco da cidade.

A quarta e última mesa, um casal de namorados magérrimos. Só se vê pele e osso. Dividem um único prato e ainda sobra bastante comida. Olheiras profundas nos olhos, pele pálida. Um comenta com o outro que não consegue sequer comer um prato de massa, que já entra em pânico, achando que vai engordar.

Certamente depois de olhar atentamente estas cenas propostas, você acha que vamos falar sobre gula, vícios, desequilíbrios. Sim! Mas não somente. Temos certeza de que, ao passarmos por estas mesas, você provavelmente se identificou com ao menos uma delas. Não? Observe atentamente. Veja que o exemplo se estende muito além da comida e alcança os nossos comportamentos e tendências como um todo: os exageros, os apegos, os egoísmos, e tantas outras manifestações do ‘destempero’.

Ocorre que os erros da gula – que, ao contrário do que muitos pensam, não se resume ao “comer em demasia” – são uma excelente base para refletirmos melhor sobre a temperança, que, como ensina o Catecismo da Igreja Católica é a virtude moral que modera a atração pelos prazeres e procura o equilíbrio no uso dos bens criados. Assegura o domínio da vontade sobre os instintos e mantém os desejos dentro dos limites da honestidade.

Vejam que belo: a temperança não é a virtude que elimina os prazeres, abafa os instintos ou extirpa os desejos – pois estes, na contramão do senso comum dos cristãos, não são pecaminosos em si mesmos -, tendo, na verdade, uma função tão mais elevada e profunda de moderar, equilibrar, dar a certa medida às nossas paixões.

Como afirma São Tomás de Aquino, as paixões não se consideram doenças ou perturbações da alma senão quando carecem da moderação da razão[3]. Em outras palavras, as paixões são potências que tendem para o bem ou para o mal, dependendo apenas de como e se aplicamos a nossa razão sobre elas. Já vimos, na reflexão sobre a prudência, que três são os atos da razão: aconselhar/indagar, julgar e mandar/aplicar. Assim, se submetermos as nossas paixões, os nossos apetites, à razão, transformaremos toda a potência que o próprio Deus nos deu, como dom, em bem.

Indo ainda mais adiante, o Aquinate nos ensina que se denominarmos paixões todos os movimentos do apetite sensitivo, então a perfeição do bem humano requer que elas sejam moderadas pela razão. Ora, sendo a razão quase a raiz do bem humano, este será tanto mais perfeito quanto maior for o número de coisas convenientes ao homem a que ele se aplicar[4]. Em outras palavras, a moderação das nossas paixões é necessária para alcançarmos a perfeição.

Não nos enganemos: Deus nos criou e nos deu um temperamento – o conjunto de inclinações íntimas que brotam da nossa constituição fisiológica  – não para sermos reféns de nossas paixões, usando-as como eterna desculpa para evitarmos a perfeição, mas, muito pelo contrário, para nos utilizarmos disso para a nossa santidade! E, como tudo o que fazemos de bom só pode vir do sumo Bem, Ele não nos deixa desamparados, dando-nos a virtude da temperança para alcançarmos, auxiliados pela Sua graça, tal humanamente impossível missão.

 


 

* Provérbios 4, 27

[1] João Paulo II, 1978, Audiência Geral

[2] Pe. Francisco Faus, Autodomínio – elogio da temperança

[3] Suma Teológica, Ia IIae, Q. 24, art. 2

[4] Suma Teológica, Ia IIae, Q. 24, art. 3

Reflexos de Salvação 53 – A Mansidão de um Colérico

Como pode um homem colérico, aquele que conhecemos como estressado, ser considerado por seu amigo como amável; e, ainda, te-lo como referência para imaginar o temperamento de Deus? Assim aconteceu com São Vicente de Paula ao se referir ao seu amigo São Francisco de Sales. Francisco, homem de temperamento forte, possuia um temperamento colérico ao extremo – não e difícil encontrar um texto sobre o assunto que não o cite como exemplo – porém, conseguiu após um esforço pessoal e abertura à graça de Deus, dominar e ordenar seu temperamento a fim de ser chamado de Doutor Manso. Neste dia em que celebramos o grande bispo de Genebra, queremos falar um pouco sobre o temperamento colérico e a virtude da mansidão.

As boas qualidades de um colérico é a atividade, entendimento agudo, vontade forte, concentração, constância, magnanimidade, liberalidade. Eis aí as excelentes prendas deste temperamento riquíssimo. Os coléricos (ou belicosos) são apaixonados e voluntariosos. Práticos, desembaraçados, são mais inclinados a obrar do que a pensar. O repouso e a inação repugnam à sua natureza. Sempre estão acariciando o seu espírito com um grande projeto. Apenas acabam de conceber um fim, põem mãos à obra, sem desistir por causa das dificuldades. Entre eles abundam os chefes, os conquistadores, os grandes apóstolos. São homens de governo. Não são daqueles que deixam para amanhã o que deveriam fazer hoje; antes, preferem fazer hoje o que deveriam deixar para amanhã. Se surgem obstáculos e inconvenientes, esforçam-se para os superar e vencer. Apesar do seu ímpeto irascível, quando conseguem reprimi-lo pela virtude, alcançam uma suavidade e doçura da melhor cepa.¹

Com esta definição do grande teólogo Royo Marin, identificamos algumas características essenciais de Francisco de Sales. Foi bispo de Genebra e se destacou justamente por sua grande capacidade de governar, sabendo lidar com todas as realidades de seu clero e de seu povo, sendo não somente um grande líder; mas também, um grande pastor, destacou-se por formar a todos na santa doutrina e na via espiritual. Mas foi a sua capacidade de reprimir os impulsos explosivos e duros de seu temperamento que se destaca.

São Francisco de Sales relata em uma das suas obras, Palestras íntimas,  qual era sua reação, ao receber correções ou discordâncias de opinião, como suas veias se dilatavam, como sua expressão facial emanava raiva, todavia, vencendo seu temperamento colérico, arranhava sua escrivaninha e fazia silêncio, sem dar atenção aquele ímpeto. Quando, devido ao seu temperamento, o sangue lhe subia ante humilhações e burlas, ele se continha de tal maneira que muitos pensavam que nunca se encolerizava.

A liturgia da Missa anima-nos a pedir ao Senhor a graça de imitarmos a caridade e a mansidão de São Francisco de Sales, a fim de com ele chegarmos à glória do Céu². A amabilidade e a mansidão, foram virtudes que o santo Bispo de Genebra, permanecendo firme na verdade, praticou com esmero no trato com todas as pessoas, mesmo com as que pensavam e agiam de modo bem diferente do seu. Destas virtudes, que tornam possível ou facilitam a convivência, e que são tão necessárias a todos, dizia o Santo: “É necessário tê-las em grande provisão e muito à mão, pois devem ser usadas quase continuamente”³.

Estas virtudes levam-nos a esforçar-nos em todas as situações por tornar a vida mais grata aos que estão ao nosso lado. Tornam amáveis as relações entre os homens, e são uma verdadeira ajuda mútua no nosso caminho para o Céu, que é para onde queremos ir. Não provocam talvez uma grande admiração, mas, quando faltam, nota-se, e as relações entre os homens tornam-se tensas e difíceis.

São virtudes que, pela sua própria natureza, se opõem ao egoísmo, ao gesto brusco, ao mau-humor, às faltas de educação, à desordem, aos gritos e impaciências. A conversa agradável, o trato cheio de respeito devem estar sempre presentes no trabalho, no trânsito… e, de modo particular, no relacionamento com aqueles com quem convivemos habitualmente. São virtudes “contra as quais faltam grandemente os que na rua parecem anjos, e na própria casa diabos” , como dizia o Santo. 

São Francisco faleceu aos 56 anos de idade, na festa dos Santos Inocentes, em 28 de dezembro de 1622. Seu fígado, devido ao constante esforço para controlar seus ímpetos de cólera, havia-se transformado em pedra. Seu corpo foi encontrado incorrupto 10 anos após seu falecimento. O Santo Príncipe de Genebra soube viver inteiramente o conselho de Nosso Senhor no Evangelho: “Aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis descanso para vossas almas”. Que possamos hoje rezar com toda a Igreja: Ó Deus que, para a salvação dos homens, quisestes que o santo bispo São Francisco de Sales se fizesse tudo para todos, concedei-nos que, a seu exemplo, manifestemos sempre a mansidão do vosso amor no serviço aos nossos irmãos.

 

¹ Cf. Frei Antonio Royo Marin.

²Cf. Oração depois da Comunhão, Missa própria de São Francisco de Sales;

³Cf. São Francisco de Sales, Introdução à vida devota, III

⁴Cf.  São Francisco de Sales, op. cit., III, 8

⁵Cf. A sua festa é celebrada no dia 24 de janeiro porque, nesse dia do ano de 1623, os seus restos mortais foram trasladados para a sepultura definitiva em Annecy. Foi beatificado em 1661 e canonizado quatro anos depois. Pio IX declarou-o Doutor da Igreja e Pio XI proclamou-o Padroeiro dos jornalistas e dos escritores católicos.

⁶ Cf. Mt. 11, 29

⁷Cf. Oração coleta, Missa própria de São Francisco de Sales.